quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Midnight Black Earth

As notas rastejam sobre minha pele, me excitam, me corroem. O hino sem voz dos condenados é arranjado pelos músicos fantasmas. As labaredas da estação me oprimem, languidamente me enfraquecem. A peça maldita, fruto ilegítimo da loucura dos prisioneiros. Eu os ouço na escuridão, no isolamento decrépito, também devo ser um condenado. O vinho infla minha razão e desafia as noções do criador. Amarga poção lenitiva , elixir dos prazeres mais hedonistas, templo de Baco e palácio do absoluto. A batida constante conta os momentos melancólicos que antecedem o desconhecido. A noite escorre, selvagem, calma, com a fleuma da tempestade. Na terra negra do solo preto e vulcânico, os monolitos cinzentos e obeliscos de vidro, vias infinitas e turbulentas, monstros mecânicos em movimento acelerado. A fumaça, intoxicante e sensual, serve de neblina nesta noite quente em que as sombras caem, em pingos sucessivos, no abismo do tempo e do corpo. O pulsar sanguíneo da percussão dita o tom fúnebre da fanfarra inerte. Nada se move, os halos de luz brilham fantásticos sobre a podridão do pavimento. Bombas de neón explodem na periferia de seu horizonte, ofertas voluptuosas de carne, sangue e ganância. A traição fria como o cano do revólver, que esquenta com a cólera do disparo e sepulta todo o peso do ódio no crânio do infeliz. Os templos conservados entre os bordéis, espinhas do inferno que perfuram o solo negro, santuários da salvação eterna e reino dos escravocratas de almas, conduzem o rebanho espiritual para o mais macabro matadouro, oh, os horrores satânicos, volúpias celestiais. Um monstro acaba de dilacerar uma jovem na avenida principal, seus restos mortais se encontram nas ferragens do estômago da besta, que ainda conserva a chama de seu combustível a consumir a adorável cabeça da mocinha, transformando seu lindo rosto de Venus na crapulosa caveira negra consumida pelo inferno. Dentro da quimera, um carrasco podre e degradado, uma garrafa de vodka na mão e as calças abaixadas. Não esporrou, mas vomitou seu sangue sobre a cabeça já lacerada do travesti que lhe cedia seus serviços. Nas entranhas da fera, essas se confundem com as da presa. O sangue e o metal retorcido pelo fogo compõe esta pira urbana e pagã, uma homenagem solene a estas quatro vítimas da catastrófica ordem natural. Quatro? Sim, o feto esmagado que ocupava o útero da moça devorada encontrava-se fritando sob o motor imperioso da máquina. Doce quase criança, aberração ainda não formada. Um bom prato para o sinistro celerado que observa tudo na esquina com um sorriso vacilante e agita seu membro sob a capa. Os gritos dos inocentes e dos miseráveis que padecem sob a brutalidade implacável do cotidiano babilônico ecoam timidamente mesclando-se ao tumulto da metrópole. Servir e proteger, vigiar e punir. Os suínos crapulosos patrulham as vias em busca de suas próprias vítimas. O respeito do metal da insígnia é assegurado pelo metal da pistola, a Justiça impotente largou sua espada e a balança serve para pesar sua dose de heroína. Um milagre urbano, porra de deus! A estátua santa sangra numa paróquia o licor infecto da perfídia. O sempre ilustre parricida lambe sua faca e consome o sangue de seu genitor. Messias crucificados em todo poste, sua morte ilumina os caminhos das almas perdidas, seu sangue é a noite, que flui e se esvai, dejeto psicopático que volta ao esgoto. Extasiante atmosfera, quantos são os crimes e desventuras sórdidas que nossa pólis imponente oferece aos seus habitantes. O espetáculo é eterno, a ordem é o caos. Tudo deve perecer, os vermes invadem o concreto... e até mesmo as chamas são negras sob o badalar cruel da meia noite.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Décimo quinto dia de Sodoma



"Permiti-me, senhores", disse, "que interrompa um instante o relato das paixões para vós comunicar um acontecimento que não tem nenhuma relação com ele. Apenas diz respeito a mim mesma, mas como me ordenaste seguir com os acontecimentos interessantes da minha história mesmo quando não cabiam no relato dos gostos, acredito que este é de uma natureza que não deve ser silenciada, Havia muito tempo que na casa da senhora Fournier, tornando-me a mais antiga no seu harém e aquela em quem mais confiava. Era euq uem costumava arranjar os encontros e receber o dinheiro. Essa mulher fizera as vezes de minha mãe, socorreu-me em diferentes necessidades, escrevera-me fielmente na Inglaterra, abrira-me gentilmente a sua casa quando do meu retorno, quando meus problemas levaram a lá desejar de novo exilar-me. Por vinte vezesm emprestou-me dinheiro e muitas vezes nem exigiu que a pagasse de volta. Chegara o momento de lhe provar meu reconhecimento e de corresponder a sua extrema confiança em mim, e ides julgar, senhores, como minha alma se abria à virtude e o acesso fácil que a ela tinha. A Fournier adoeceu e seu primeiro cuidado foi mandar me chamar. 'Duclos, minha filha, eu te amo', disse-me, 'sabes disso e vou provar-te isso pela extrema confiança que vou ter em ti neste momento. Acredito que, apesar de tua cabeça má, sejas incapaz de enganar uma amiga; estou muito doente, estou velha e nçao sei, conseqüentemente, o que vai ser disso. Tenho parentes que vão se jogar sobre minha sucessão; quero pelo menos frustrá-los dos cem mil francos que tenho em ouro nesse cofrinho. Toma, minha filha', disse, 'aqui estão, a ti os entrego, mas exijo que disponhas deles do modo que vou prescrever'. 'Oh, minha cara mãe', disse-lhe abrindo-lhe os braços, 'essas precauções me desolam; elas serão certamente inúteis, mas se infelizmente se tornarem necessárias, juro-vos que seguirei precisamente vossas intenções'. 'Eu acredito, minha filha', disse-me. 'Por isso lancei os olhos sobre ti. Esse cofrinho contém, portanto, cem mil francos em ouro; tenho alguns escrúpulos, minha cara amiga, alguns arrependimentos da vida que levei, da quantidade de moças que tenho lançado no crime e arrancado a Deus. Quero, portanto, empregar dois recursos para que a divindade seja menos severa para comigo: o da esmola e o da reza. As duas primeiras porções dessa soma, que serão de quinze mil francos cada, irão uma aos capuchinhos da rua Saint-Honoré, para que esses bons Padres rezem perpetuamente uma missa para a salvação de minha alma; a outra, do mesmo montante, entregarpas, assim que fechar os olhos, ao padre da paróquia, de modo que ele distribua na forma de esmolas entre os pobres do bairro. A esmola é uma excelente coisa, minha filha, nada como ela para consertar, aos olhos de Deus, os pecados que cometemos na terra. Os pobres são seus filhos e ele ama a todos aqueles que os aliviam; nunca o agradamos tanto como com esmolas. É o verdadeiro modo de ganhar o céu para si, minha filha. Quanto à terceira parte, de sessenta mil libras, logo depois da minha morte, irás entregá-la ao chamado Petignon, aprendiz de sapateiro, na rua du Bouloir. Esse infeliz é meu filho, ele nem desconfia. É um bastardo adulterino; quero dar a esse infeliz órfão, ao morrer, provas de minha ternura. Quanto às dez mil outras libras restantes, minha cara Duclos, quero que as guarde como uma fraca prova do meu apego por ti e para te compensar o trabalho que terás para cuidar do restante. Tomara que essa pequena soma te ajude a encontrar um partido e a deixar a indigna profissão que exercemos, na qual não há salvaçã, nem esperança de jamais consegui-la'. Interiromente encantada por abocanhar uma soma tão boa e muito decidida, por medo de me confundir nas divisões, de fazer um único lote para mim mesma, desandei artificiosamente a chorar nos braços da velha matrona, reafirmando-lhe meus juramentos de fidelidade, e não me preocupei mais nesão com os meios de impedir que um cruel retorno de saúde viesse mudar sua resolução. Esse meio se apresentou já no dia seguinte: o médico receitou um emético, e como eu cuidava dela, foi a mim que entregou o pacote, recomendando usálo em duas vezes, e tomar muito cuidado para separá-lo mesmo, pois eu a mataria caso lhe desse tudo de uma vez só; apenas deveria administrar a segunda dose caso a primeira não surtisse bastante efeito. Prometi ao Esculápio ter todos os cuidados possíveis e, assim que virou as costas, banindo de meu coração tantos sentimentos fúteis de reconhecimento que teriam detido uma alma fraca, afastando todo arrependimento e toda fraqueza, e considerando apenas meu ouro, o doce charme de possuí-lo e as cócegas deliciosas que sempre se sente cada vez que se projeta uma má ação, prognóstico certo do prazer que ela trará, entregando-me apenas a tudo isso, disse, tratei imediatamente de misturar as duas doses num copo de água e apresentei a bebida à minha doce amiga, que, encolindo com segurança, nisso logo encontrou a morte que eu me esforçara por lhe proporcionar. Não posso vos descrever o que eu senti enquanto via minha obra ter êxito. Cada um dos vômitos nos quais sua vida se esvaia produzia uma sensação realmente deliciosa em toda minha organização: escutava-a, olhava-a, estava completamente ébria. Abria-me os braços, dirigia-me um último adeus, e eu gozava, já formando mil projetos com esse ouro que ia possuir. Não demorou muito; a Fournier morreu naquela mesma noite e vi-me dona do pecúlio."



"Duclos", disse o Duque, "diga a verdade: te masturbaste? A sensação fina e voluptuosa do crime alcançou a volúpia?" "Sim, Monsenhor, confesso; e esporrei cinco vezes em seguida desde o começo da noite." "Logo é verdade", disse o Duque gritando, "logo é verdade que o crime tem por si só um atrativo, que independententemente de toda volúpia, ele pode bastar para inflamar todas as paixões e lançar no mesmo delírio que os próprios atos de lubricidade! E então?..." "Então, senhor Duquem nabdei enterrar honrosamente a patroa, herdei do bastardo Petignon, tive o cuidado de não mandar rezar missas e muito menos de distribuir esmolas, espécie de ação que sempre tive em verdadeiro horror, por mais que a Fournier falasse bem disso. Afirmo ser preciso que existam miseráveis no mundo, que a natureza assim quer, assim exige, e que pretender restablecer o equilíbrio é ir contra suas leis, se ela quis a desordem." "O que, Duclos", disse Durcet, "tens princípios! Que felicidade ver os que tens nesse pomto; todo alívio trazido ao infortúnio é um crime real contra a ordem da natureza. A desigualdade que instalou entre nossos indivíduos prova que a discordância a agrada, uma vez que a estabeleceu e que a quer nas fortunas como nos corpos. Assim como é permitido ao fraco consertá-la pelo roubo, também é permitido ao forte restabelecê-la ao recusar seus socorros. O universo não subsistiria um instante sequer se a semelhança entre todos os seres fosse perfeita; é dessa dessemelhança que nasce a ordem que mantém e conduz tudo. É, portanto, preciso evitar perturbá-la. Por sinal, acreditando fazer um bem a essa infeliz classe de homens, faço muito mal a outra, pois o infortúnio é a sementeira onde o rico vai buscar os objetos de sua luxúria ou de sua crueldade; eu o privo desse ramo de prazer ao impedir por meus socorros que essa classe se entregue a ele. Portanto, com minhas esmolas, apenas agradei ligeiramente uma parcela da raça humana, e prejudiquei prodigiosamente a outra. Logo, considero a esmola não somente como uma coisa má em si, mas considero-a ainda como um crime real contra a natureza que, ao nos apontar as diferenças, nunca pretendeu que as perturbássemos. Assim, muito longe de ajudar o pobre, de consolar a viúva e aliviar o órfão, se ajo segundo as verdadeiras intenções da natureza, não apenas os deixarei no estado em que a natureza os colocou, mas ajudarei até suas visadas ao prolongar-lhes esse estado e ao me opor vivamente a sua mudança, e acharei, para isso, que todos os meios são lícitos". "O quê", disse o Duque, "até mesmo roubá-los ou arruiná-los?" "Certamente", disse o financista. "Até mesmo aumentar seu número, uma vez que sua classe serve para outra, e que ao multiplicá-los, se faço um pouco de pena a uma, farei muito bem a outra." "Eis um sistema bem duro, meus amigos", disse Curval. "Dizem, entretanto, ser doce fazer bem aos miseráveis!" "Que abuso", retrucou Durcet, "esse gozo não se compara ao outro. O primeiro é quimérico, o outro é real; o primeiro se deve a preconceiros, o outro se embasa na razão; pelo órgão do orgulho, a mais falsa de todas nossas sensações, um pode tintilar um instante no coração, o ouro é um verdadeiro gozo da mente e que inflama todas as paixões pelo próprio fato de contariar as opiniões comuns. Numa palavra, um me deixa de pau duro", disse Durcet, "e sinto muita pouca coisa com o outro." "Mas será que devemos sempre relacionar tudo a nossos sentidos?", disse o Bispo. "Tudo, meu amigo", disse Durcet. "Eles são os únicos que devem nos guiar em todas as ações da vida, pois apenas seu órgão é realmente imperioso." "Mas milhares de crimes podem nascer desse sistema", disse o Bispo. "Ei, o que me importa é o crime", respondeu Durcet, "contanto que me deleite. O crime é um modo da natureza, uma maneira com a qual move o homem. Por que não quereis que eu me deixe mover tanto por ela neste sentido como no da virtude? Ela precisa de ambos, e sirvo-a tanto num como no outro. Mas ei-nos uma discussão que nos levaria longe demais. A hora do jantar vai tocar, e a Duclos está muito longe de ter cumprido a sua tarefa. Continuai, moça encantadora, continuai, e ficai certa de que acabastes de nos confessar uma ação e sistemas que vos merecem nossa eterna estima assim como a de todos os filósofos."

Trecho de Os 120 dias de Sodoma, Le Marquis de Sade.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Manifesto contra o Ser

"This summer I swam in the ocean
And I swam in a swimming pool
Salt my wounds, chlorine my eyes
I'm a self-destructive fool
a self-destructive fool"

- Loudon Wainwright III



Estou cansado de sua pompa prolixa e pedante! Seu orgulho exacerbado e filosofias mirabolantes e fabulosas, que não passam de teorias esdrúxulas para servir de auto afirmação patética e para legitimar seu fracasso como pessoa. Quanto ao seu desgosto imaturo pela sociedade, saiba que é recíproco. Seus hábitos grotescos e vícios ridículos são um cortejo de babaquices adolescentes onde reina a auto indulgência hipócrita. Tudo o que você faz é transformar sua preguiça insolente numa justificativa para sua vida de derrotado e infeliz. Suas mentiras são mal elaboradas, sua malandragem é estúpida e sua inteligência é menor do que você faz aparentar. É um misógino e um delinquente, além de tudo é criminoso. Que pague logo por seus delitos infantis antes que arrisque a segurança de uma pessoa respeitosa, pois já tivemos o suficiente de seus insultos inconsequentes e perfídias irritantes. Seu mau gosto é fascinante, ainda mais por ser ostentado com tanta opulência e tola crença em seus interesses refinados. É inapto à convivência e a prova cabal deste veredito pode ser vista em sua própria figura. É mentiroso, cruel, estúpido e viciado. Seus elogios da corrupção apelam somente aos celerados e pervertidos da pior espécie. Seu cotidiano torpe é um conjunto de acontecimentos entediantes e triviais, que só são falsamente embelezados pelo esplendor de sua embriaguez e a fuga desesperada de uma realidade onde você é fraco demais para viver. Este é o motivo de todas suas fantasias irracionais e pseudo filosofias alucinadas. Não é surpresa que sua existência se dê de forma tão desprezível e solitária, qualquer pessoa com o mínimo de respeito por si mesma e por qualquer outro, ao contrário de você, não pode deixar de se sentir ultrajada pela sua presença desagradável. Este é só o prelúdio de uma grande lista de fatores que o tornam o que é: a manifestação repugnante do delírio de superioridade preguiçoso e limitado. Um detalhe ridículo cuja menção se faz interessante é a sua teimosia tão covarde que o impede que comita o rito final dos fracassados. A execução por lei simplesmente lhe daria o conforto de não ter nem mesmo a responsabilidade de lidar como um homem com o fardo que é a própria sentença.

"How can I let this slip through my suspicious mind?
I do not care about your opinions anymore.
They mean nothing to me.
A reckless past catching up to me... and for what?"

- Fooling the Weak, Make a Change... Kill Yourself (II, 2007)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O Vigário

"Cause I need to watch things die from a distance
Vicariously I live while the whole world dies
You all need it too, don't lie"

- Tool



Em minha torre de pedra observo tudo. O espetáculo babélico da ordem primal. Meus olhos torpes são órgãos copuladores, causam espasmos lúbricos quando estimulados pelo cenário lúgubre do matadouro. A crueza da carne, exposta e mutilada, ejaculando sangue e merda, as massas viscerais disformes pulsando ao som do desespero, ecos abissais da dor. O pus blenorrágico escorre sobre a pele alva e lasciva da vítima. O som de um disparo, a certeza de um cadáver, o triturar lento dos ossos, o licor emético da podridão, o sangue que escorre de maneira indulgente, maculando o mundo em seu vício de se espalhar, fluindo e criando o oceano vermelho que inunda esta terra santa abandonada. O prazer crapuloso do voyeur que assiste e aprende, gosta e goza com o êxtase maldito da tragédia. Elixir sensorial e sensual que é a gênese de todo prazer. Delírios sádicos e intensões calamitosas permeiam meus desejos mais vorazes. Mas assisto pacientemente, espero, me regojizo na queda eminente de toda essa raça. Admiro a aptidão do assassino e sua astúcia letal, o poder destrutivo do fogo e do aço, a opressão despótica sobre a presa e o controle soberano e edílico sobre a vida. A insanidade caótica e cínica do psicopata é digna de sua canonização na catedral da dor. A exatidão cartesiana nos designios de um torturador celerado e cruel e a precisão fria do executor são os atributos que constituem os valores nos códigos do desregramento a que são fiéis nossos grandiosos vilões. Campeões celerados e pérfidos que são protagonistas das fábulas mais fascinantes que os homens ingênuos temem, mas desejam. Não há um véu de aparências, a verdade é exposta como um cadáver eviscerado. A hecatombe humana é uma apresentação sem fim, mas nunca é desinteressante mesmo para aqueles cujos gostos são os mais refinados e implacáveis. Reduzo minhas presas a seu sucubato servil. O furor do vício eclesiástico e devasso estimula a cólera lúbrica dos meus golpes imperiosos. A deliciosa volúpia do assassinato é uma maquinação constante na fábrica de atrocidades que é o cérebro entorpecido do criminoso santificado. O fiel sempre observará com deleite o perpétuo desfile de monstruosidades e criaturas oniródinas em sua ruína mais imunda, o membro fantasma de aberrações mutiladas acaricia o ventre alvo e puro da virgem desecrada. Sou o vigário, mestre da masmorra e observador rapineiro. Meu cárcere é o obelisco de rocha e metal em que confabulo com languidez. O vício engendra a doença da alma. A náusea provocada pelo miasma fétido da podridão humana inflama o ódio e desafia a sanidade. Deve-se abraçar todos estes prazeres atrozes com ávida determinação, pois o crime é por demais grandioso para ser simplesmente admirado. Uma gargalhada doentia anuncia o despertar do algoz. Torrentes rubras escoarão pelas vias de pedra ao comando do tirano. Que a carnificina comece.


"Pois, diga-se de passagem, embora o crime não possua o tipo de delicadeza encontrado na virtude, não é ele sempre mais sublime? Não tem um carater constante de grandeza e sublimidade que prevalece e sempre prevalecerá sobre os encantos monótonos da virtude? Quereis falar-nos da utilidade de um ou de outra? Será que nos cabe sondar as leis da natureza, ou decidir se, sendo-lhe o vício tão necessário como a virtude, ela talvez nos inspire de modo igual um pendor para um ou para outra, em razão de suas necessidades próprias?"
- Marquês de Sade