sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Siegfriedblut




Carregamos este fardo em nosso sangue. É a dádiva do herói em seu sentido puro, profundamente trágico e moralmente neutro. A mitologia nórdica e o ciclo de óperas Der Ring des Nibelungen são um monumental retrato deste espírito que era comum entre o povo bárbaro e transcendeu sobre a era cristã em algumas localidades como a Escandinávia, onde a relação dos escandinavos com sua terra natal e suas raízes pagãs ainda constitui um vínculo forte com um passado no qual os homens não eram subjugados por suas próprias ideologias e dogmas na figura fantasmagórica de um poder onipotente supremo. Estes indivíduos tinham maior liberdade, mas não num sentido ingênuo e idealista, a liberdade era fruto de sua sabedoria, que por costume passou a ser contada entre as pessoas, para seus descendentes e assim por diante. Esse compêndio de estórias poeticamente ricas, com um sentimento épico imaculado de dogmas morais, veio a formar os panteões, divindades e criaturas mágicas que, interagindo com os homens e com os mortos, retratavam as diferentes facetas de visões maduras dos sábios, modeladas pela melodia dos bardos e ardendo com a coragem dos bravos. A coragem era admitida pela teoria dos humores como comportamento análogo à quantidade de sangue que circulava no corpo da vítima. Esta coragem pode ser também atribuida a este conhecimento bárbaro modelando a figura de Siegfried. O grande herói corrompido, uma espécie de ser amaldiçoado pelo destino, neste caso sendo fruto de um adultério incestuoso (assim como Mordred nas lendas arthurianas). Mas o seu destino não foi somente mórbido, foi glorioso! Siegfried era a esperança de Wotan para evitar a precipitação do Götterdammerung, quando Valhalla seria incinerada pelas chamas do esquecimento. Siegfried sempre foi astuto, mas não havia sido grandioso. Era impaciente com Mime, o anão que o criara e que secretamente sabia de toda a história de Siegfried e não o contara. Foi quando o anão lhe contou a história do poderoso dragão Fafner que possuía o Anel de Nibelungen e reforjou a espada Nothung que conseguira com a mãe de Siegfried para fazer com que este matasse o dragão e Mime pudesse se apossar do Anel. Logo que a espada ficou pronta, o herói partiu a bigorna ao meio com um golpe preciso, demonstração de que aquela era a arma apropriada para a batalha. O dragão era o poder absoluto na forma fantástica de um monstro terrível, mas Siegfrieg representava a frieza e a temerariedade daquele que por se reconhecer como superior, se considera conhecedor da vida e poderia arriscar-se sem fraquejar em frente ao mais grandioso desafio. O golpe fatal penetrou a pele escamosa do dragão e derramou uma torrente do seu sangue sobre Siegfried. Este viu que o sangue lhe cobria os dedos e os queimava e instintivamente os colocou na boca. Foi quando pôde sentir. A consciência plena e instantânea induzida por um elixir maravilhoso: o próprio sangue, a sabedoria do dragão foi assimilada por ele numa revelação ritualística, o que o tornou tão astuto que possuiu o Anel e descobriu intuitiva e logicamente quais eram os verdadeiros planos de Mime, que o criou e treinou como um simples instrumento para conseguir o ídolo de toda sua obsessão. Aí está a vontade peçonhenta que mente e manipula para conseguir o que quer. Mas o herói consegue distinguir o falso do real e vê através das máscaras das cobras. Siegdried assassinou Mime rapidamente. Seus objetivos eram maiores. Ele se tornara agora plenamente consciente de seu poder e de como poderia usá-lo desafiando a todo tipo de lei, a tradição, a promessa e as divindades! Siegfried foi um ser livre de medos e de laços, o que o tornava alguém que era senhor de sua própria liberdade, mas ele não escapou das influências das próprias paixões infladas pela vontade ardente e pelo desejo incontrolado. Além disso, nasceu maldito, ele tinha o espírito profundamente altivo e a frieza emocional dos sábios. Teve uma morte trágica, mas com ela, a destruição materializada pelas lâminas de homens traiçoeiros que o acertaram em seu único ponto vulnerável: seu coração. O sangue do dragão supostamente não cobriu este ponto de suas costas pois uma folha havia pousado sobre sua pele pouco antes do sangue escorrer pelo seu corpo. Uma simples folha, uma fatalidade meramente mecânica e causal, ironia mórbida do acaso, ou alguma trama superior ao entendimento terreno? Eis o ponto onde a especulação filosófica racional se parte como numa encruzilhada nas expedições mentais pela filosofia e pela fantasia. A estrada se divide em duas: a do que é estritamente racional e materialista, portanto vazio de qualquer valor e com um fim fatalmente visível num precipício; ou a estrada nebulosa, entorpecida pelas brumas que oprimem a atmosfera com o mistério. O desconhecido é o devaneio, a arte, o delírio, a loucura, é também conhecimento! Profundamente fenomenológico e rico em experiências e idéias extravagantes, pensamentos quiméricos mais aterrorizantes que o dragão Fafner e a genialidade da poesia que expressa em si uma verdade sobre o universo, sobre a vida como um todo. Mas essa experiência, por ser subjetiva e individual, não pode ser garantida por um método de interpretação racional e niilista, torna-se um nada desprovido de existência e reduzido ao esquecimento. Valhalla queimou com a queda de Siegfried. Este mesmo quebrou a lança de Odin, mas antigo dos deuses. É um fim onde não há uma lição de moral manipulada para distinguir o que deve ser considerado certo do errado de maneira absoluta. É um fim onde a destruição dá um fim a tudo, pois é de uma sabedoria não só racionalista que a morte abate tudo que existe. O fim é garantido para tudo que ainda não teve um. Nem homens nem deses permanecem no mundo, não são nem nunca foram matéria em nossa dimensão. Eles são os sonhos, as idéias, as histórias antigas que são contadas sem pretensão de influência, mas que instigam quem as conhecem a deixar sua mente se aventurar neste épico de uma forma não comovida pelo drama, mas inspirada pelo espírito da tragédia.



Esta é uma idéia poderosa quando cai nas mãos dos que não são mais os anciãos bárbaros de um passado distante, mas astutos líderes que transformam a tragédia mitológica numa ideologia nacionalista, provocando todo um povo, hipnotizado pela sua própria ilusão de grandeza num gesto desesperado para se livrar da depressão de uma era de miséria, a entregar suas mentes a um governo totalitário e expansionista. A queda do Terceiro Reich não põe um fim a essa cruzada megalomaníaca pela dominação e pelo poder absoluto encarnada numa figura que nossa cultura adora odiar, Hitler. Este foi um homem, a encarnação de um indivíduo que retirou um povo decadente na baixeza podre da sub-existência. Mas a queda deste não significa o fim do fenômeno, repito. Ele não foi o primeiro e não o último. Porque esses homens não são indivíduos. Eles são grandes figuras construídas como fantoches para inspirar num povo um sentimento completamente devoto aos interesses de uma elite que sempre manipula o fantoche enquanto camuflada pelas sombras. Essas elites não se dissolveram, elas encontraram o ambiente perfeito para estenderem como nunca antes os seus tentáculos pelo mundo capitalista. A criação de ídolos populares adequados às expectativas e ideais (frutos da influência ideológica das próprias elites) é uma estratégia ainda utilizada pelos predadores que dominam a civilização em alcateias extremamente estruturadas. Os verdadeiros líderes ficam nas sombras. Quem representa são os fantoches, manipulado pelo interesse mais primitivo do homem: poder. O Anel de Nibelungen de nossa era não passa de papel. Dinheiro. Vulgar, frágil, sem qualquer valor, mas capaz de comprar qualquer maravilha. Quanto mais avança o sistema, mais sem importância se torna o dinheiro em si, mas o crédito, a opressão, a escravidão e a dominação, o exercício de um poder absoluto que nega qualquer construção social de Estado de Direito e é ligada a essa obsessão primitiva já retratada nas mais antigas histórias. A ganância de Mime, que criou e manipulou Siegfried desde seu nascimento, mas não contava com sua voraz superioridade. O sangue de dragão do herói não é algo para ser modelado por qualquer axioma ascético e utilizado para satisfazer os interesses de um Demiurgo material. Mime nunca ensinou o medo a Siegfried, que sempre alimentou uma curiosidade sobre este sentimento que era tão misterioso para ele. A poção é o símbolo da destruição. Destino inevitável de tudo que existe. Aqueles que a ingerem podem fazer duas escolhas: ter a audácia de percorrer as neblinas do caminho do lobo tendo o conhecimento de que as brumas também o levarão ao precipício... ou se arrastar por uma longa existência numa densa ilusão forjada da pureza de um delírio. Servindo finalmente de sacrifício para alimentar a máquina de um Valhalla corrompido.

"Woher ich stamme,
rate mir noch;
weise ja scheinst du,
Wilder, im Sterben:
rat' es nach meinem Namen: -
Siegfried bin ich genannt. "

(Siegfried, Der Ring des Nibelungen; Richard Wagner)

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