terça-feira, 1 de setembro de 2009

2019 - Uma crônica extra temporal

"As mentiras dos poetas estão gastas
Pelos horrores do século"
- Adolfo Luxúria Canibal

Curitiba, 9 de setembro de 2019.


PREFEITO DE CURITIBA É CONDENADO À MORTE POR CORRUPÇÃO, TRÁFICO DE DROGAS E DESTRUIÇÃO DA SOCIEDADE


"Ontem, sexta-feira, 8, o até então prefeito de Curitiba (mors obliterata) foi sentenciado à morte por eletricidade pelos seus crimes contra a humanidade. A sentença foi outorgada pelo Supremo Tribunal em decisão unânime num histórico processo de repercussão internacional que decidiu por executar o réu com um método de tortura e morte já extinto devido a sua crueldade medievalesca: a cadeira elétrica. O cínico ex-prefeito, que sequer contratou um advogado, não quis apelar contra a sentença, mas fez fazer um discurso público aterrorizante transmitido em rede nacional pelas maiores emissoras do país. A seguir se encontra, palavra por palavra, uma das mensagens públicas mais perversas da história da comunicação:


'É com retumbante alegria que aceito minha sentença. Meu deturpado plano foi e é um grande sucesso. Fico francamente admirado e orgulhoso ao constatar que nestes poucos anos em que governei o município de Curitiba consegui acabar com a sebosa falácia que sempre foi esta infinidade de alcunhas falidas associadas ao nome desta cidade. Me dá grande satisfação ler nos mais destacados jornais do Brasil e do mundo o novo apelido de nossa cidade: "O Câncer da América" (como se fosse limitado a ela). Mas quero pronunciar abertamente, aos que não perceberam, que apesar de meus grandiosos feitos, eu fui somente o agente! Não se adiantem com seus rabos empinados dizendo que estou repassando a responsabilidade de minha administração, me arrependendo por isso, sendo covarde o suficiente para passar a culpa! Fui, voluntariamente, o agente da obliteração sempre presente como muitos outros como genes patológicos e oncológicos no pútrido tecido da sociedade! Sou fruto de toda angústia, do desespero, da louca sede por destruição que é inerente e imanente a todo espírito notável que já andou sobre a Terra! Estes espíritos, meus rivais e irmãos filhos de Loki, são uma aristocracia - não de sangue nem de classe - mas de armas! Você que ouve este discurso agora e sabe do que estou falando, abra mão de sua raiva hipócrita: ela não é real e sabe disso! Dê liberdade, neste solene momento de crise, àquilo que provém legitimamente de seu ego constantemente oprimido pelas ilusões e mentiras que viciam a atmosfera! Aproveite o caos em que vive agora e dê vazão à sua ilustre vontade. Armas em mãos, todas elas! Desde sua pistola ilegalmente adquirida até seus punhos treinados. Se for junkie, seu isqueiro, agulha ou garrafa! Mas não fique aprisionado. Não se reduza ao vácuo da embriaguez entre as paredes de seu quarto sujo! Espalhe a destruição, dissemine a discórdia, não esconda seus olhos vidrados! Não finja sobriedade, profira aos sete ventos que está sob a influência da Insanidade e a possui para distribuir. Destile o ódio de seu pulso firme e descarregue-o com selvageria! As patéticas construções carcerárias da sociedade são ruínas inertes, elas não podem restringir sua humanidade, sua bestialidade! Estupre as convenções sem pudores, enterre com sadismo seu punhal fálico no imundo e devasso ânus da civilização. Se és lobo, reúna-se com sua alcatéia e saia para caçar. Se é abutre, paire com seus semelhantes arrogantes sobre as carcaças e presas indefesas! Se é um réptil sutil e rastejante, dá o bote e ejacula a peçonha! Se é inseto, aproveita! Eles estão fracos. Usurpa o sangue e infecta a carne! Teu veneno também é o meu. Eu sou o agente nefasto de seus desejos reprimidos. O desejo pela violência, a auto destruíção moderada pelo costume. Em meus inescrupulosos pactos com poderosos distribuidores internacionais de narcóticos, facilitei a vocês, meu povo, o acesso ao seu éden particular - o único possível -. Baixei os presos. Tornei os traficantes amigáveis. Os cafetões confiantes. Comprei as almas dos mais poderosos delegados alimentando nosso acordo com os restos mortais de suas ilusões éticas mais sagradas! Mostrei ao homem da lei sua impotência. Lhe mostrei que seu único poder está num pedaço frio e sedento feito de aço e chumbo localizado estrategicamente na cintura. Mostrei ao criminoso que é tão desprezível quanto o antagonista. Seu único poder reside na sua ousadia. Mostrei ao comerciante, ao jurista, ao médico, ao professor; enfim, ao trabalhador honesto e medíocre que toda sua vida não o pertencia. Mostrei a vocês todos as poucas e horrendas verdades da existência objetiva. A indiferença concreta de nossos monumentos históricos ao presenciarem o sangue correndo pelas fodidas calçadas de petit pavet. Nossos postes corroídos, inabaláveis obeliscos em meio à fumaça. Os ziguráticos esgotos arrotando o odor insuportável das massas nas periferias suburbanas da metrópole! A chuva ácida e gelada maculando a pele pálida do pedestre resoluto no cotidiano podre de cidadão exemplar. A hipócrita ecologia dos ativistas tornou-se apática quando vislumbrou sua própria impotência. 'Retarde o envenenamento. Morra lentamente' não é mais a moral falsa que infecta as mentes débeis da população burra. Agora a destruição é legítima. O homem reconhece-se como realmente é. Um agente maldito. Na verdade, nem isto. Vazio, isento de qualquer valor. Preso e flagelado pelo arame farpado afiado mas frágil da ilusão social. Contribuí com a economia. Enchi seus bolsos. Os fiz gastar um pouco menos. Não é curioso como para de reclamar do decrépito sistema de saúde quando o miserável burro pode comprar um estimado produto no pesadelo do mercado corporativo? Não se condene, você gostou e você gosta. Aceita a soberania da vontade. A perversão é o circo diário das aberrações. Apliquei a maiêutica da patologia social e ajudei a surgir do casulo o temido sociopata juvenil. Detentos revoltosos eu inspirei, quando eles puderam identificar não só no condenado ao seu lado a motivação sórdida de uma mente criminosa, mas na mais elevada das esferas sociais. E minha corrupção não foi covarde e hesitante como a dos bolcheviques ricaços que escalaram a opinião pública vazia até o poder antes de mim. Inspirei outros mais semelhantes a mim. Outros poderosos de olhar fleumático. Os lobos que se fingem de cães pastores protetores do rebanho. Cão/lobo. Mesma coisa. Um é domesticado e mais covarde, mas a natureza é a mesma: o instinto animalesco. A auto consciência mórbida que leva ao banquete brutal e suicida. Aceito por fim meu destino com muito orgulho. Devo ressaltar que admiro muito o método de minha execução. 6 minutos de Inferno na terra - também o único possível -, fritarei como um animal sujo. Um cancro amputado do já irreversivelmente contaminado tecido. Já sabem que não sou o único, existem tumores até mesmo mais vorazes, mas ainda esperam enganar. Enganar um pouco, ao menos. Conseguirão, por pouco tempo. A reação é em cadeia e logo surgirão os outros. Por que não você? Basta que não tenha medo de encontrar um destino como o meu. Minha execução é o exemplo perfeito da natureza brutal e sádica que pertence a toda uma espécie. Contradições demais, sim, mas a verdade surge em momentos como esse. O ódio prevalece. Ele queima como o combustível cáustico de toda ação humana legítima. Os frutos infinitos de meus atos não estão limitados à metrópole que governei ou a qualquer barreira geográfica. Minha revolução foi universal. Meu suicídio, um genocídio. Me despeço de vocês para cair na inexistência. Conquistei a imortalidade marcando com uma brasa quente a minha mácula no imaginário desta geração e das próximas. Serei, livre de ascetismos, um deus morto.'

As calamidades deste homem não foram redutíveis a um ato programático de destruição. Seu profético legado é um longo cortejo de decadência que nos expõe amargamente o inevitável futuro de nossa civilização: o nada."


O nome do réu em questão foi omitido para manter coerente e inevitável o curso do tempo humano numa perspectiva cronológica subjugada ao mecanicismo do Tempo (fora do tempo).

"This is the end. My only friend: the end."
-
Jim Morrison



Um comentário:

  1. Esse foi o mais chocante discurso que já li. É impossível não sentir-se arrebatado até o lugar dos ouvintes que, certamente, acompanhavam pálidos e boquiabertos, a meu ver, a cena. A qualidade semântica, o uso das palavras, o estilo, manifesta em quem "ouve" tamanho temor, devido a tanta liberdade realística empregada aqui, que somos levados a crer, submissos, nessa futura distopia...

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